Posicionamento em tempos de saturação: quando o líder esquece quem é.

O caso Havaianas e a lição esquecida sobre território de marca: por que líderes não podem escolher lados

Na última semana, assistimos a um dos casos mais emblemáticos – e evitáveis – de crise de posicionamento dos últimos anos. As Havaianas, marca que construiu império sobre a premissa “Todo Mundo Usa”, conseguiu a proeza de alienar metade do seu público em uma única campanha de fim de ano.

O resultado? Boicotes, queima de chinelos, protestos nas redes sociais e uma lição brutal sobre algo que Al Ries e Jack Trout nos ensinaram há mais de 40 anos: posicionamento não é sobre o que você diz, mas sobre o território mental que você ocupa.

E quando você é líder, esse território tem regras diferentes.

O que aconteceu com as Havaianas?

Para quem não acompanhou, a Alpargatas lançou uma campanha de fim de ano protagonizada por Fernanda Torres, recém-indicada ao Oscar por “Ainda Estou Aqui”. A campanha trazia a atriz dizendo: “Não quero que você comece 2026 com o pé direito”, em referência ao slogan tradicional de começar o ano “com o pé direito”.

O trocadilho, aparentemente criativo, tinha uma segunda camada de leitura impossível de ignorar. Em um Brasil profundamente polarizado, onde “direita” e “esquerda” deixaram de ser apenas posições políticas para se tornarem identidades tribais, a frase soou como declaração explícita de lado.

A direita interpretou como ataque político claro. A esquerda celebrou como posicionamento corajoso. E a marca que durante décadas foi símbolo de unidade nacional – “Todo Mundo Usa” – se viu no centro de uma guerra cultural que ela mesma criou.

Pior: não foi um deslize acidental. Foi uma escolha criativa deliberada, aprovada por múltiplas camadas de gestão, produzida profissionalmente, veiculada nacionalmente. Alguém, em algum momento, olhou para aquela frase e pensou: “Sim, isso representa bem o que as Havaianas devem comunicar”.

O que mais me incomoda nesse caso não é a polêmica em si. É que isso poderia – e deveria – ter sido evitado por qualquer estrategista de marca minimamente competente. É que alguém, em alguma sala de reunião, tinha que ter levantado a mão e perguntado: “Espera, isso está de acordo com nosso posicionamento?”

E a resposta óbvia seria: não.

A Regra de Ouro do líder de mercado

Existe um princípio fundamental em posicionamento que parece ter sido esquecido por gestores e agências: líderes de mercado não escolhem lados em batalhas dicotômicas.

Não é questão de covardia. É estratégia pura.

Quando você é líder – e as Havaianas detêm mais de 80% do mercado brasileiro de sandálias – seu território mental é inclusão, não exclusão. Seu poder vem de ser para todos, não para alguns.

Philip Kotler, em suas evoluções do conceito de marketing, sempre enfatizou que marcas líderes constroem valor através da amplitude de apelo, não da segmentação radical. Segmentação é estratégia de desafiante, de quem precisa conquistar território. Não de quem já domina o território inteiro.

“Todo Mundo Usa” não é apenas um slogan das Havaianas. É seu posicionamento estratégico. É a promessa que construiu a marca ao longo de décadas. É o que permite que um chinelo esteja aos pés do executivo e do trabalhador braçal, da socialite e da dona de casa, do surfista e do universitário, da esquerda e da direita.

Quando você quebra essa promessa – quando deixa de ser “para todos” e escolhe “não para o pé direito” – você não está apenas errando em uma campanha. Você está traindo seu próprio posicionamento.

Território mental X Presença de mídia

Aqui entra um conceito crucial que Ries e Trout nos ensinaram e que poucos realmente compreendem: a diferença entre território mental e presença de mídia.

Presença de mídia é fácil. É fazer barulho. É viralizar. É estar na boca do povo. E, nesse quesito, a campanha das Havaianas foi um sucesso estrondoso. Trending topics, matérias em todos os veículos, milhões de interações.

Território mental é difícil. É ocupar um espaço claro, consistente e valioso na mente do consumidor. É ser algo específico e inquestionável para seu público.

As Havaianas tinham um dos territórios mentais mais valiosos do Brasil: o chinelo democrático, que une, que transcende classes, regiões e ideologias. Era posicionamento de ouro. Invejável. Raro em um país tão fragmentado.

Em nome de presença de mídia – de trending topics, de buzz, de “relevância cultural”, de um trocadilho “criativo” – a marca arriscou esse território. E o que ganhou? Viralização? Sim. Mas ao custo de fragmentar a percepção de unidade que era seu maior ativo.

Como disse David Aaker em “Building Strong Brands”: “A marca forte não é aquela que fala mais alto, mas aquela que ocupa um espaço claro e defensável na mente do consumidor”. E você não defende território mental dizendo que não quer que metade da população comece o ano “com o pé direito”.

A Armadilha do “Posicionamento Cultural”

Nos últimos anos, virou moda no marketing falar em “posicionamento cultural”, “brand activism”, “tomar posição em causas relevantes”. E há mérito nisso – marcas não podem ser vazias de valores.

Mas existe uma diferença brutal entre ter valores e fazer trocadilhos que escolhem lados em guerras culturais.

Uma marca pode defender sustentabilidade, diversidade, inclusão, educação – valores universais que, mesmo quando controversos, possuem apelo majoritário e se conectam organicamente ao propósito da marca.

Outra coisa completamente diferente é fazer um trocadilho onde não existe ambiguidade possível, onde metade do país está de um lado e metade do outro, onde a própria estrutura da frase já é lida como declaração política explícita.

“Não quero que você comece com o pé direito” não é sutil. Não é interpretação forçada. É literal. É deliberado. E quando você é líder de mercado, quando seu posicionamento é “para todos”, essa escolha não é apenas arriscada. É suicida.

Consistência: O ativo mais subestimado

Uma das lições mais importantes que aprendi em 23 anos trabalhando com mais de 2.000 empresas é que consistência vale mais que brilho.

Marcas fortes não são aquelas que fazem a campanha mais criativa do ano. São aquelas que, década após década, reforçam o mesmo território, aprofundam a mesma percepção, constroem tijolo por tijolo o mesmo posicionamento.

As Havaianas fizeram isso brilhantemente por décadas:

  • “Legítimas. Só as Havaianas” – autenticidade
  • “Todo Mundo Usa” – democratização
  • “As Legítimas” – originalidade

Cada campanha reforçava o mesmo território: o chinelo brasileiro, autêntico, democrático, para todos. TODOS. Sem exceção.

Até que alguém decidiu que era hora de ser “cultural”, “relevante”, “engajado”, “criativo com trocadilhos políticos”. E em uma única campanha, jogou décadas de consistência no lixo.

Como escrevi no meu livro “Full Marketing”, uma das camadas mais críticas da Mandala Lebbe é o Branding – o centro gravitacional que deve permanecer sólido mesmo quando tudo ao redor muda. Campanhas mudam. Táticas evoluem. Linguagens se atualizam. Mas o posicionamento, o território mental, a promessa central? Esses devem ser inquebráveis.

O Custo Real da Inconsistência

Vamos além do óbvio das hashtags de boicote e dos chinelos queimados. O custo real dessa inconsistência é muito mais profundo:

1. Erosão do brand equity

Cada consumidor que agora associa Havaianas a um lado político específico é um consumidor que perdeu a percepção de marca democrática. Isso não se reconstrói com uma nota de desculpas. Leva anos. E milhões em investimento para reconquistar.

2. Fragmentação do território mental

A marca deixou de ocupar um espaço claro para ocupar múltiplos espaços conflitantes. Para uns, virou “marca de esquerda”. Para outros, “marca covarde que pediu desculpas”. Para outros ainda, “marca oportunista que quis surfar polêmica”. Nenhuma dessas percepções fortalece o posicionamento original de “todo mundo usa”.

3. Vulnerabilidade competitiva

Quando o líder vacila, desafiantes atacam. Concorrentes agora têm uma abertura para ocupar o território abandonado: “a sandália que é realmente para todos, sem politização”. É presente de bandeja para quem estava esperando uma brecha.

4. Perda de confiança interna

Equipes comerciais, varejistas, distribuidores – todos que dependem da força da marca – agora precisam lidar com consumidores confusos, irritados, questionadores. A marca deixou de ser um ativo que facilita vendas para se tornar um passivo que exige explicações, gestão de crise, conversas difíceis.

As Regras do Posicionamento para Líderes

Inspirado em Ries & Trout, mas atualizado para o contexto atual de polarização extrema, aqui estão as regras que líderes de mercado NÃO podem ignorar:

Regra 1: Líderes defendem, não atacam

Seu papel não é revolucionar. É proteger o território conquistado. Inovação tática? Sim. Criatividade nas campanhas? Absolutamente. Mas mudança de posicionamento, trocadilhos que dividem, mensagens que excluem? Nunca sem razão estratégica clara. E “buzz” não é razão estratégica.

Regra 2: Líderes ampliam, não segmentam

Desafiantes conquistam nichos. Líderes dominam a categoria inteira. Toda ação deve expandir o território, trazer mais gente para dentro da marca, não fragmentá-lo dizendo que não quer “pé direito”.

Regra 3: Líderes evitam dicotomias

Política, futebol, religião – qualquer tema que divide o país em tribos antagônicas é território proibido. Seu trabalho é unir seu mercado em torno da sua marca, não dividi-lo com trocadilhos que funcionam como shibboleth político.

Regra 4: Líderes são consistentes acima de tudo

Campanhas criativas são importantes. Trocadilhos podem ser inteligentes. Mas nunca – nunca – ao custo de confundir ou contradizer o posicionamento. A cada ação, a cada frase, a cada escolha criativa, pergunte: “Isso reforça ou dilui meu território mental de ‘todo mundo usa’?”

Regra 5: Líderes pensam em décadas, não em quarters

Brand equity se constrói lentamente e se destrói rapidamente. Aquela campanha “ousada” que pode gerar buzz por duas semanas vale o risco de décadas de construção? Vale alienar permanentemente 40% do seu mercado por um trending topic?

Como se destacar quando tudo parece igual?

A pergunta que gestores sempre fazem: “Mas Fernando, se não podemos ser provocativos, se não podemos fazer trocadilhos políticos, se não podemos tomar posições, como nos destacamos em um mercado saturado?”

A resposta é simples, mas difícil de executar: você se destaca sendo MAIS você, não sendo outra coisa.

As Havaianas não precisavam de um trocadilho politicamente carregado para se destacar no fim de ano. Elas precisavam aprofundar o que já as tornava únicas:

  • Celebrar a brasilidade autêntica que une (e no Brasil, independente de lado político, todo mundo tem Havaianas no armário)
  • Contar histórias reais de como a marca une pessoas diferentes em momentos importantes
  • Inovar em produto, em experiência, em distribuição – mantendo a essência democrática
  • Criar campanhas que reforcem “todo mundo usa” de formas criativas, emocionantes, memoráveis – mas inclusivas

Destaque não vem de ser diferente do seu posicionamento. Vem de ser a versão mais autêntica, mais profunda, mais memorável dele.

A paciência que falta aos gestores modernos

E voltamos ao conceito que abriu esta série: paciência estratégica.

Construir posicionamento forte exige paciência. Exige resistir à tentação do buzz fácil, da polêmica que viraliza, do trocadilho “criativo” que gera mídia espontânea mas destrói território.

Exige ter a coragem de dizer “não” para campanhas criativas brilhantes que não servem ao posicionamento. Exige abrir mão de trending topics que fragmentam o território. Exige recusar frases que, por mais inteligentes que pareçam na sala de reunião, contradizem décadas de construção.

Mas é essa paciência, essa disciplina estratégica, que constrói marcas que atravessam gerações. Que se tornam parte da cultura. Que valem bilhões não pelo que vendem hoje, mas pelo território mental inexpugnável que ocupam.

As Havaianas tinham isso. E em nome de “relevância cultural” de curto prazo, de um trocadilho que pareceu inteligente demais para resistir, colocaram tudo em risco.

A Lição para todos nós

Este caso não é apenas sobre Havaianas. É sobre todos nós, gestores de marca, que diariamente enfrentamos pressões para sermos “relevantes”, “engajados”, “criativos”, “ousados”.

A lição é clara: conheça profundamente seu posicionamento e proteja-o acima de tudo.

Pergunte-se sempre:

  • Qual território mental ocupo hoje?
  • Esta ação reforça ou confunde esse território?
  • Esta frase, este trocadilho, esta escolha criativa está de acordo com minha promessa de marca?
  • Estou construindo para décadas ou para quarters?
  • Estou sendo fiel ao meu posicionamento ou perseguindo buzz?

E se você é líder de mercado, adicione uma pergunta crucial:

  • Esta ação une ou divide meu público?

Porque, como Ries e Trout nos ensinaram há 44 anos e como continuamos aprendendo dolorosamente em 2025: a batalha pelo posicionamento acontece na mente do consumidor, e uma vez que você perde território mental, reconquistá-lo é infinitamente mais difícil – e caro – do que protegê-lo desde sempre.

E às vezes, a coisa mais criativa que você pode fazer é simplesmente não dizer aquela frase que parecia tão inteligente na hora.


Fernando Lebbe é fundador da Lebbe Full Marketing, e criador da Mandala Lebbe, metodologia proprietária de marketing integrado desenvolvida ao longo de 23 anos trabalhando com mais de 2.000 empresas de diversos segmentos. Autor do livro “Full Marketing: A Revolução do Marketing Integrado”, palestrante e mentor de líderes de marketing.

Fernando Lebbe